Aparelhos vestíveis e apps de saúde geram novo filão de dados pessoais

Aparelhos vestíveis e apps de saúde geram novo filão de dados pessoaisSÃO PAULO – No livro O Círculo, do escritor americano Dave Eggers, a protagonista, uma jovem recém-formada, entra na maior empresa de tecnologia do mundo. Além de trabalhar com as principais mentes do país e estar na vanguarda de todas as discussões tecnológicas e sociais, a moça terá direito a privilégios como um refeitório de primeira linha, eventos exclusivos para os funcionários do Círculo e um plano de saúde que cobre praticamente tudo. A única condição para ter acesso a esse benefício é engolir um sensor que, uma vez dentro do corpo, passa a monitorar todos os sinais do indivíduo. A empresa tem acesso a essa informação 24 horas por dia.

É fato que ainda estamos muito longe dessa realidade imaginada, mas o cenário atual parece apontar nessa direção.

Com o lançamento do Apple Watch e a incorporação do app Saúde ao iOS 8, a maior empresa do mundo entrou de vez em um mercado que vem crescendo nos últimos anos e deve dominar as atenções pelos próximos: o da coleta de dados a respeito de nosso corpo e saúde. Os médicos vêm usando acelerômetros para estudar atividades físicas desde os anos 80, mas a partir da revolução dos smartphones, eles passaram a ser item quase obrigatório nos chamados wearables, dispositivos tecnológicos de vestir.

Usando relógios, pulseiras, garfos e até meias (veja abaixo), é possível acompanhar alguns dados como a distância caminhada, número de passos, estimar a queima de calorias e a rotina de atividades físicas em geral. Dotados de acelerômetros esses dispositivos podem dar uma ideia do nível de atividade realizada por seus usuários.

“Nós olhamos para vários aspectos dos dados, por exemplo, os passos que uma pessoa deu, horas dormidas, refeições registradas e mais”, explica Patrick Sebastian Henkel, coordenador internacional de relações públicas da Jawbone. A empresa produz o UP, monitor de pulso que se liga ao smartphone através de um aplicativo.

“O coração do nosso sistema é ‘registrar, entender e agir’. Nossa função é ajudar as pessoas a entender os dados que estão gerando – compreendê-los, saber o que fazer com isso e mudar suas vidas.”

Hoje existem diversas opções de apps, aparelhos e sistemas de leituras desses dados disponíveis no mercado, ao alcance de esportistas profissionais e amadores. Segundo Henkel, “espera-se que o crescimento global desse mercado seja muito grande, de acordo com diversas fontes de pesquisa na indústria”.

De olho

No ano passado, nos EUA, foram vendidas 70 milhões de unidades de “fitness trackers”, segundo a Gartner. Em 2014, foram gerados mais de US$ 2 bilhões; a previsão é que até 2019 esse ramo movimente US$ 5,4 bilhões, segundo a consultoria Parks Associates.

“Percebemos que, universalmente, as pessoas querem viver melhor, mas isso pode ter diferentes significados para diferentes pessoas. Portanto, cada um pode ter benefícios únicos ao acompanhar sua saúde”, diz.

Mas o “self-tracking” na saúde não é novidade para os portadores de certos problemas. Quem tem pressão alta e diabetes tem de monitorar constantemente o corpo para garantir o controle sobre essas doenças. Porém aparelhos medidores de glicose, por exemplo, atendem a especificações exigidas pelas associações médicas. “Existe sempre uma questão quando falamos sobre a precisão dos aparelhos que usamos para acompanhar nossas vidas”, afirma Ernesto Ramirez, diretor do Quantified Self, organização que se dedica a espalhar a cultura da “autoquantificação” ao redor do mundo.

“A questão é saber o quão precisa a informação precisa ser. Se você está acompanhando problemas médicos, é importante ter leituras muito precisas, e é por isso que existem regulamentações e testes exaustivos nesses aparelhos”, diz. A Jawbone, por exemplo, reconhece que seus produtos são feitos “para o consumidor” e não para uso médico.

Apesar de não fornecerem dados 100% precisos, esses gadgets estão ajudando cientistas a compreender melhor os hábitos das pessoas. Antes, usava-se questionários para entender melhor como era a rotina de um determinado indivíduo. Com os trackers, é possível reunir dados mais precisos e ricos a respeito de como as pessoas se relacionam com os exercícios físicos. “ Com o tipo de equipamento que se usa hoje, captura-se toda a atividade física – todos os perfis de movimentos, em contextos diferentes. As perguntas (que os pesquisadores faziam) pegavam apenas uma parte das atividades”, disse ao site LiveScience Richard Troiano, epidemiologista do programa de pesquisa aplicada do National Cancer Institute, nos EUA.

Privado

No mundo pós-Edward Snowden, a questão da privacidade invadiu também o nosso corpo. Com tantos dados sobre hábitos, capacidade física e males de saúde sendo armazenados em servidores de empresas, estamos correndo o risco de termos nossas entranhas expostas ao mundo? As empresas, claro, não creem em problemas.

“Na Jawbone nós respeitamos totalmente a privacidade de nossos usuários. Somente compartilhamos o dados se eles assim desejarem – por exemplo, na integração com um app de terceiros. Temos a custódia dos dados dos usuários. Coletamos, analisamos e os apresentamos ao usuário com significado. Se o usuário quiser, nós deletamos tudo”, afirma Henkel.

Para Ramirez, não faz sentido manter os dados privados, já que eles podem fornecer dados a pesquisas. “Muitas pessoas usam a privacidade como um escudo sem realmente discutir o que significa. Hoje, com a enorme quantidade de dados que é coletada, sempre vemos uma variedade de histórias sobre vazamentos e privacidade das informações. Não devemos ter medo de uma base de dados”, diz.

“No entanto, devemos ter atenção quando formos dar as chaves do ‘reino’ aos apps de terceiros que podem não ter os melhores interesses. Nossos dados não deveriam ser selados numa base de dados a qual não podemos ver, a qual não temos acesso, não podemos controlar. Nós, como consumidores e criadores de dados, precisamos lutar pelo acesso.”

Ainda não está claro que tipo de consequências o acompanhamento de nosso corpo em tempo real pode ter, tanto para a melhora de nossa saúde, quanto para a nossa privacidade. A julgar pela visão de Dave Eggers (leia entrevista abaixo), esse é o só o começo de uma era de monitoramento mais do que íntimo.

ENTREVISTA: Dave Eggers, jornalista e escritor autor de ‘O Círculo’

‘No futuro, veremos vazamentos de dados de saúde’

Em seu livro ‘O Círculo’, empresas monitoram dados de saúde, futuro próximo rumo ao qual estamos caminhando

Em entrevista ao Estado por e-mail, Dave Eggers, jornalista autor de O Círculo opinou sobre onde a obsessão por dados e medição pode nos levar.

‘O Círculo’ foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras

• Em seu livro, a empresa O Círculo monitora a saúde dos empregados usando sensores que ficam dentro do corpo. De onde veio sua inspiração para criar esse cenário?

Aqui nos EUA, a maioria das pessoas tem seguro-saúde através das empresas nas quais trabalham. E elas dão descontos se você se exercita com regularidade, se não fuma etc. Você ganha descontos por bom comportamento. Dada a habilidade de monitorar dados de saúde, pensei que seria apenas lógico que uma empresa como o Círculo começaria a monitorar os dados de saúde de seus empregados, e os recompensaria ou puniria por seus comportamentos. Acho que isso tem chance de virar parte da política de saúde das empresas num futuro próximo. Existe muito dinheiro em jogo.

• Quais podem ser as consequências dessa coleta de dados de saúde?

É uma preocupação muito grande. Quando dados são coletados, é possível que ele sejam espalhados e usados inapropriadamente. Logo veremos vazamentos de dados de saúde – a começar pelo tipo de invasão que almeja celebridades e se tornou muito comum. Quando essas bases de dados se tornam mais e mais centralizadas, então os hackers serão capazes de encontrar qualquer tipo de informação. E quando essa informação inclui DNA, entramos num território muito perigoso. Os empregadores poderiam escolher alguém com um DNA por conta do que ele diz a respeito do futuro de sua saúde, níveis de risco para certas doenças, aptidão para certas tarefas etc.

O caso do Círculo é extremo, mas não é impossível que empresas, escolas e governos passem a obrigar a coleta de dados – tudo em nome de prover o melhor cuidado com o menor preço. O estranho é que se tivéssemos dados minuto a minuto em todo mundo, o cuidado médico iria de fato melhorar e os custos diminuiriam de maneira significativa, porque problemas poderiam ser antecipados. Mas, claro, todos esses dados viriam com um custo alto: a eliminação da pessoa privada.

Fonte: Site ePharma