RIO- A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) rejeitou o pedido de patente do principal e mais eficaz medicamento para tratar hepatite C crônica, o sofosbuvir. A decisão, antecipada pela coluna de Ancelmo Gois no sábado, é um grande passo para que possam surgir genéricos deste remédio e que, por conta da concorrência, os preços caiam. Mas ainda existe mais uma etapa para que esse cenário seja possível: na sequência da decisão da Anvisa, o pedido de patente será enviado ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), que analisará a documentação e tomará a decisão final. Embora o Ministério da Saúde tenha determinado prioridade para este caso, não há prazo legal para o INPI apresentar sua resolução.
A farmacêutica que pediu a patente, a Gilead Sciences, afirma que cobra atualmente no Brasil US$ 4.197 — o correspondente a R$ 13 mil — pelo tratamento de 12 semanas, considerado o ideal para que um paciente tenha 95% de chances de cura. O valor é alto, mas já é fruto de descontos que o Ministério da Saúde negociou com a empresa ao longo dos últimos anos. Quando o remédio foi lançado, em 2013, nos Estados Unidos, o preço inicial era de inacreditáveis US$ 84 mil por esse mesmo tratamento, o que equivaleria nos valores de hoje a mais de R$ 250 mil.
FIOCRUZ PODE PRODUZIR POR ATÉ US$ 3 MIL
Por causa do alto custo por paciente, o Serviço Único de Saúde (SUS) raciona a terapia: apenas as pessoas que se encontram nos dois últimos graus de cirrose hepática em decorrência da doença recebem o remédio. Sem a patente, o sofosbuvir deverá ter seu preço bem reduzido. A Fiocruz, por exemplo, anunciou que pode produzir e vender as pílulas suficientes para as 12 semanas por, no máximo, US$ 3 mil. Versões genéricas em países como a Índia chegam a custar menos de US$ 500. A expectativa é de que, assim, mais pacientes possam se beneficiar.
— Do jeito que estamos hoje, é preciso piorar muito para ser tratado de forma adequada — lamenta Jeová Fragoso, que adquiriu hepatite C em 1994 e, com o tratamento à base de sofosbuvir, em 2015, conseguiu negativar o vírus. — Com esse remédio, o tratamento para hepatite C mudou da água para o vinho. As chances de cura passaram de 20%, com as drogas disponíveis antes, para mais de 90%. E os efeitos colaterais, que antes eram terríveis, agora são quase inexistentes.
Quando Fragoso começou o tratamento, ainda faltavam meses para que o sofosbuvir fosse incorporado ao SUS, mas como ele já havia tido o fígado transplantado e estava piorando rapidamente, acionou a Justiça para obrigar o plano de saúde a cobrir todo o tratamento.
— Eu não podia esperar. Se esperasse, morreria — lembra ele, que é fundador de uma ONG de defesa dos direitos de quem tem a doença.
Existem 80 milhões de pessoas vivendo com hepatite C no mundo, das quais apenas um milhão têm acesso a novas opções de tratamento, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). De acordo com um relatório divulgado ano passado pela entidade, há 700 mil mortes de infectados por ano, e os países que têm alcançado a maior cobertura no tratamento são aqueles em que remédios genéricos estão disponíveis. No Brasil, a estimativa é de que haja 1,6 milhão de infectados com o vírus, e somente 30 mil recebem o sofosbuvir.
A americana Gilead tem a patente do remédio nos Estados Unidos, e, desde outubro de 2015, o Ministério da Saúde importa a droga para distribuir pelo SUS. Enquanto a farmacêutica tem seu pedido de patente no Brasil analisado, o país não pode comprar o medicamento de nenhuma outra empresa. O INPI informou que os documentos sobre o pedido de patente ainda não chegaram ao instituto e que não é possível, neste momento, dar uma previsão de quando sairá o resultado do exame.
— Esperamos que saia uma decisão ainda este ano — aspira Felipe de Carvalho, coordenador no Brasil da Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais dos Médicos Sem Fronteiras. — O que pode atrapalhar é um possível recurso da empresa para tentar reverter a decisão da Anvisa. O monopólio de um remédio tão importante é prejudicial à sociedade como um todo.
Em nota, a farmacêutica não disse se entrará com recurso, mas apenas que confia no INPI.
“A Gilead Sciences acredita na competência técnica do INPI para avaliar a questão de patenteabilidade dos nossos produtos. Consideramos que a proteção da propriedade intelectual é uma das mais importantes formas de estímulo constante à inovação e à busca por novas opções terapêuticas que podem tratar e curar milhares de pacientes”, afirmou a companhia.
Arair Azambuja, presidente do Movimento Brasileiro de Luta contra as Hepatites Virais, defende que a Gilead não é merecedora da patente porque não inovou, uma vez que outras empresas chegaram à fórmula do sofosbuvir mais ou menos ao mesmo tempo.
A associação Médicos Sem Fronteiras também está se mobilizando para evitar que a patente seja dada nos países da União Europeia, onde ela passa pelo mesmo trâmite do Brasil.
— É muito importante o que está acontecendo hoje no Brasil porque uma decisão influencia outras. Então esperamos que o posicionamento da Anvisa influencie o debate global — diz Carvalho.
Fonte: O Globo