SPACs: investem bilhões nas startups de Saúde

No tempo das cavernas, em algum momento alguém se cansou do frio e da comida crua e de forma instintiva descobriu o fogo. Como esse indivíduo conseguiu divergir da maioria e se atreveu a experimentar algo diferente? Por que ele fez isso? Na época do homem primitivo a mudança era evitada sempre que possível: a conformidade com a maioria mantinha o ser humano vivo e seguro. Como esse indivíduo especial convenceu a maioria? É difícil dizer, mas o psicólogo romeno Serge Moscovici (1928-2014) se consagrou no século XX ao afirmar que “esse homem singular, minoritário, conseguiu sustentar uma opinião diferente porque era uma ideia que beneficiava a todos e, acima de tudo, porque ele foi convincente. Ou seja, sem a influência persuasiva da minoria sobre a maioria não haveria progresso no mundo”. No século XXI, nunca houve tantas minorias aconselhando as maiorias à novos caminhos. Nos dias de hoje, o Mercado de Capitais repete Moscovici e mostra que alguém convincente (minoria) pode apresentar um novo modelo capaz de beneficiar a muitos (maioria).

Um exemplo são as SPACs (Special Purpose Acquisition Companies), que em tradução livre significa “empresas com propósito específico de aquisição”. Uma SPAC em geral é uma holding (empresa de participações societárias), constituída especificamente para levantar fundos via IPO para depois, e só depois, adquirir uma empresa que exista no “mundo-real-produtivo”. Embora já existam desde a década de 1990, as SPACs cresceram sobremaneira nos meses pandêmicos. Elas não produzem nada, vendem menos ainda, não tem funcionários e não possuem qualquer carteira própria de produtos, sendo tão somente ‘águias que sobrevoam as savanas da inovação em busca de oportunidades’. Trata-se, enfim, de um grupo de investidores de alta credibilidade e histórico empreendedor que desenvolve um IPO para captar investimentos, tendo posteriormente dois anos para adquirir ou se fundir a outra companhia (de preferência semelhante a um unicórnio”, as estrelas com valor superior a US$ 1 bilhão). O capital levantado no IPO pela SPAC fica inacessível em uma conta garantia (escrow-account), sendo liberado somente quando houver a aquisição. Se ela deixar de adquirir a empresa durante esse biênio “será extinta, tendo que devolver os recursos aos investidores”.

Por motivos óbvios a Covid-19 fez o segmento de digital health ser um dos preferidos das SPACs. A Sharecare, por exemplo, uma consolidada empresa do mercado de saúde digital, anunciou em fevereiro de 2021 seus planos de ingressar no mercado público (IPO) por meio de fusão com a Falcon Capital Acquisition Corp, uma SPAC. O resultado será uma combinação avaliada em US$ 3,9 bilhões. A transação deverá ser concluída no segundo trimestre de 2021, quando a Sharecare será listada na Nasdaq como ‘SHCR’. Em maio último, Jeff Arnold, CEO e fundador da Sharecare, confirmou o acordo, selando a coalização que deverá consagrar a empresa no topo das healthtechs mundiais (a Falcon Capital deverá deter perto 20% da nova empresa). Dezenas de acordos semelhantes estão sendo costurados no mercado de saúde, confirmando que o modelo SPAC deverá ser um novo ‘norte’ no setor de venture capital.

A SEC (Securities and Exchange Commission), órgão regulador do mercado de capitais nos EUA, explica que uma “SPAC é criada especificamente para reunir fundos a fim de financiar uma fusão ou oportunidade de aquisição dentro de um prazo definido”, mas as calçadas de Wall Street se acostumaram a chamar as SPACs de blank-check-companies (“empresa de cheque em branco”). Elas arrecadaram mais de US$ 38 bilhões nas primeiras 6 semanas de 2021, com uma média de US$ 296 milhões por aporte em 128 IPOs (o montante é quase a metade de todo o dinheiro arrecadado por SPACs em 2020). Grande parte dessas “partidas de capital” estão sendo direcionadas as startups de saúde (healthtechs), tendo, segundo a CB Insights, potencial de aumentar seu volume em 60% a cada trimestre. Na realidade, a base de ‘convencimento da minoria’ parte de um princípio bastante elementar: as SPACs são mais fáceis, baratas e rápidas de serem criadas, podendo captar recursos de grande envergadura (segundo relatório da PWC, um IPO tradicional leva mais de 15 meses em todo o seu processo, ao passo que via SPAC o tempo médio é de 3 a 4 meses).

O CEO da Health Assurance Acquisition Corp (HAAC), Hemant Taneja, uma organização pioneira no conceito de SPAC, explica que o setor de saúde é “uma categoria emergente, com serviços orientados a dados e centrada no consumidor, sendo capaz de dobrar uma curva de ‘care-value’ rapidamente, o que nos deixa muito satisfeitos”. Após seu IPO (US$ 500 milhões em novembro de 2020), a empresa se transformou numa voraz rastreadora de companhias inovadoras no segmento de saúde. A FS Development Corp II, outro exemplo, já está em sua segunda operação de SPAC e se baseou no sucesso da primeira, com a Gemini Therapeutics (arrecadação de US$ 175 milhões), para preparar a segunda. Mais experiente, a FS tem agora como alvo as healthtechs de biotecnologia e life science. Até março de 2021, a empresa já tinha levantado US$ 250 milhões para seu novo voo bienal. Outra transação SPAC, divulgada em maio pela Bloomberg, envolve a britânica Babylon, uma das mais exitosas startups de connect-care, que negocia com a spac Alkuri Global Acquisition Corp (Qatar) sua abertura de capital, podendo gerar uma nova companhia com valuation de US$ 3,5 bilhões.

A popularidade do conceito de SPAC tem aumentado rapidamente: havia 35 vezes mais SPACs operando em 2020 do que em 2010, e essas empresas parecem cada vez mais preparadas para grandes saltos. O modelo não é uma unanimidade, tendo várias correntes que até o ridicularizam. Mas a pressão pandêmica e a imposição que uma economia em crise exerce sobre o mercado de funding, fez com que o ano de 2021 já seja considerado “o ano das SPACs em saúde”, de acordo com Marissa Schlueter, analista sênior da CB Insights. “Com base nas atividades já apuradas, os IPOs de Saúde podem aumentar 10% em 2021, com as fusões e aquisições crescendo 35% e as negociações em SPAC se ampliando em 47%”, explicou Schlueter. Também de acordo com o SPAC Track, em 2021 já existem mais de 50 SPACs buscando ativamente empresas-alvo nos setores de saúde e ciências biológicas.

Como as SPACs são um elemento relativamente novo, também sofrem fortes oscilações, dependendo dos humores da economia. Dados da agência Spac Research, mostra que até o final de maio 422 SPACs, que arrecadaram US$ 134,4 bilhões, ainda estavam procurando empresas para se fundir (dentro do prazo legal de 2 anos). Há risco? Certamente, mas nada que a racionalidade do Stock-Market não possa tolerar, ou que a sua irracionalidade não deixe de ambicionar. Katherine Andersen, executiva do Silicon Valley Bank, explica que as SPACs são particularmente atraentes para as healthcare-startups que enfrentam questões regulatórios ou financeiras. “O modelo oferece às empresas mais flexibilidade para compartilhar projeções de lucros futuros, o que pode tornar o negócio mais atraente, especialmente para empresas em pré-faturamento”, ressalta Andersen.

“No momento há muitas SPACs por aí em busca da história certa na hora certa”, explica Veronique Ameye, vice-presidente executiva da Lumiradx, uma fabricante de ‘testes diagnósticos’ para a Covid-19 que está sendo incorporada a spac CA Healthcare Acquisition Corp, gerando um negócio avaliado em US$ 5 bilhões. Depois de entrar com um tradicional pedido de IPO, a empresa foi assediada por várias SPACs em busca de acordo. Com a escala de produção crescendo (Covid-19), a Lumiradx teve necessidade de mais financiamento de curto espaço, uma situação propicia ao “espírito-spac”. A Owlet Baby Care era outra medtech se preparando para o IPO tradicional. “O plano era abrir o capital no final de 2021 e não estávamos procurando SPACs”, explica Kurt Workman, presidente executivo. De forma inesperada, a empresa foi abordada pela Sandbridge Capital, uma SPAC que fez a Owlet economizar tempo e recursos para o lançamento de seus novos produtos.

Na realidade, os investidores antes de formarem uma SPAC já mapearam o mercado, rastrearam as oportunidades, conversaram com os targets e quando “entram em campo” já têm vários interessados, ou um único com boa atratividade. Em junho de 2021, a spac Jaws Acquisition Corp anunciou que seus acionistas aprovaram a combinação com a Cano Health, uma operadora de Centros de Atenção Primária que ocupa a 39ª posição entre as empresas privadas dos EUA. Um namoro antigo, depurado em meses de conversação, cujas ações da ‘entidade-combinada’ começam a ser negociadas na NYSE em junho com o nome de “CANO.WS” (veja exemplo de um edital SPAC). Em novembro de 2020, quando as tratativas iniciaram, o valor empresarial do negócio já era estimado em US$ 4,4 bilhões.

Na Europa, as SPACs também agitam, sendo que em 2021 as transações já movimentaram US$ 768,3 milhões, enquanto em todo o ano de 2020 foram de US$ 539,9 milhões (fonte: Dealogic). O Brasil namora o conceito, dá sinais de adesão, mas ainda não é possível abrir uma SPAC no país, embora a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tenha até criado uma consulta pública para avaliar a viabilidade do modelo no mercado nacional. Enquanto isso, e apesar da ranhetice da economia nacional em 2021, várias empresas brasileiras já levantaram recursos nos EUA via SPACs. A Valor Capital, por exemplo, levantou US$ 230 milhões em oferta pública de SPAC na Nasdaq, com ancoragem do Softfank, sendo seu alvo investir nos próximos 2 anos em empresas nacionais, inclusive na área de healthtechs.

O fato é que a Covid-19 fomenta o ‘instinto animal dos investidores’ na direção do segmento de digital health. Segundo a Rock Health Consulting, já existe em 2021 pelo menos 52 SPACs voltadas à saúde em busca de alvos, sendo que o segmento de ‘saúde conectada’ já foi alvo de 13 fusões-SPACs, anunciadas nos últimos 15 meses (11 delas concluídas ou com previsão de fechamento em 2021). Todos ficam antenados quando um novo modelo emerge de forma tão surpreendente no Mercado de Capitais, principalmente quando a tradicional equação se inverte: outrora as startups pegavam a sua malinha e giravam pelo mundo em busca de financiadores. Agora, são as SPACs que correm pelas mesmas estradas em busca de uma healthtech para chamar de sua. Bom trabalho das minorias.

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator – HIMSS@Hospitalar

Head Mentor – eHealth Mentor Institute (EMI)