Muito se fala sobre as vantagens da telemedicina em tempos de pandemia. Mas a questão é: será que as pessoas estão preparadas para transformarem esse modelo de atendimento em um hábito que vai além do recurso emergencial? Se por um lado, o público ainda está se ambientando à saúde digital, por outro, o profissional que o atende tem de se adequar rapidamente. “Estamos vivendo um novo conjunto de necessidades sociais da saúde que envolvem tecnologias de comunicação”, diz Fernando Arruda, médico especialista em Cardiologia e Clínica Médica, Gestão e Administração em Saúde e Mestre em Gestão da Clínica, coordenador do curso de Medicina na Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). E a chamada “alfabetização digital” é uma competência mais que urgente no atual contexto.
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Segundo Arruda, esse é um assunto que precisa ser definido de imediato pelo médico. “O atendimento remoto exige segurança digital, com sigilo, e adaptação do ponto de vista da competência de atendimento às necessidades do paciente. Não é a mesma coisa atender online e presencial. A capacidade de diagnóstico é diferente, a necessidade de observação de detalhes é muito maior para quem está remoto, para não cometer erros. Então, essa reflexão sobre a capacitação do profissional deve ser imediata. É necessário identificar o momento em que está na profissão, reconhecer a nova demanda da sociedade e dos seus pacientes e o que ele precisa para se adaptar a essa nova realidade. Imagino que os médicos, em um ano, vão ter de se adaptar muito para não perder pacientes”, avalia Fernando.
Formação profissional
Uma pesquisa publicada em março deste ano na revista da Associação Paulista de Medicina (APM), mostra que quase 50% dos profissionais de saúde no Brasil já estavam atendendo por teleconsulta. No entanto, quando o assunto é capacitação profissional, apenas 18,1% dos entrevistados diziam ter feito treinamento específico para atendimento online (10,9% com cursos com duração menor do que quatro horas e somente 3% com cursos acima de dez horas). Ainda, segundo a pesquisa, 39% dos pesquisados disseram que médicos e pacientes brasileiros estão preparados para a telemedicina.
Este cenário, muito provavelmente, vai evoluir com o passar do tempo. “Como gestor de curso de medicina, vejo o tanto que mudou a relação educacional de formação do médico desde o início da pandemia. É surpreendente imaginar que em pouco mais de um ano e meio criaram-se novas competências para a formação de um profissional. As necessidades sociais de saúde são vivas, pulsáteis e a solução para elas têm de ser também, tanto na educação, como na assistência”, diz Fernando Arruda.
Ele completa: “o médico que eu formei em dezembro de 2019 não está preparado para hoje. A pandemia, apesar das tristes perdas, acabou sendo um propulsor de desenvolvimento. Isso aconteceu em guerras, aconteceu quando o homem foi pra lua, e está ocorrendo agora. Todos esses momentos de grande mobilização geram impulsos tecnológicos e mudanças de comportamento. Estamos vivendo a história e aí a nossa capacidade de interpretar esse momento histórico e responder a ele talvez seja o que vai fazer diferença para os profissionais que vão continuar sendo norteadores de processos nos próximos anos”, reflete o médico.
Capacitação em atraso
“Há uma deficiência enorme, e não só no Brasil, de formação de profissionais para a nova área de telemedicina, telessaúde, saúde digital”, avalia Luiz Ary Messina, engenheiro eletrônico, mestre em banco de dados, doutor em computação gráfica e presidente da Associação Brasileira de Telemedicina e Telessaúde (ABTms). Para ele, os profissionais foram tomados de sobressalto na pandemia e, embora muitos já conhecessem o atendimento remoto, a maioria não se interessava.
“Foi um grande passo, não há dúvidas, mas poderia ser muito melhor elaborado e planejado, caso a classe médica tivesse se dado conta antes de que esta é uma prática que veio para ficar”, pondera o engenheiro, que também é um dos fundadores Rede Universitária de Telemedicina (RUTE), uma iniciativa do Ministério da Ciência e Tecnologia, apoiada pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e pela Associação Brasileira de Hospitais Universitários (Abrahue) e coordenada pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP).
“A tecnologia está sendo democratizada e as soluções estão cada vez mais viáveis, economicamente e operacionalmente, mas como tudo que envolve inovação, existem barreiras culturais. Quando desenvolvemos nossa solução de telemedicina, pensamos em uma solução simples e segura, que se aproximasse da experiência de uma consulta presencial. Em um país onde ainda há muito desconhecimento e resistência à adoção de novas tecnologias, isso é essencial”, afirma Jomar Nascimento, diretor geral e head de Tecnologia da ProDoctor.
Portanto, é certo que, mesmo de forma tímida, a questão do atendimento digital já chegou às universidades. “A grande inovação é que as instituições já colocaram a telemedicina na grade dos alunos e isso é importante porque o curso de formação de saúde existe para atender as demandas sociais de saúde. Essa é uma competência nova, estamos falando do cuidado remoto, que requer conhecimento tecnológico, habilidades de anamnese, de observação”, diz Fernando Arruda.
Experiência conta
Um atendimento digital de qualidade requer não só capacitação, como também experiência. Para Arruda, essa bagagem profissional é importante para o médico não deixar passar pontos que podem representar riscos ao paciente. “É preciso fazer uma integração de conhecimentos clínicos, habilidades, interpretar o que paciente está dizendo mesmo sem colocar a mão nele. Também é necessário saber o seu limite de atuação, quando você tem que dizer: ‘para tudo vai para a emergência agora!’”, conta o cardiologista.
À medida que os profissionais vão adquirindo mais experiência em telemedicina, os papéis do médico vão sendo revisados. Fernando Arruda enxerga o debate com otimismo. “Essa discussão vai ampliar o cuidado, as possibilidades dos pacientes de terem acesso à saúde. Isso vai beneficiar sobretudo as pessoas que vivem em lugares mais distantes e vai preencher lacunas assistenciais que a gente tem hoje no Brasil e no mundo”, finaliza.
“Temos que pensar não somente na tecnologia em si, mas na forma de endereçar as comunicações. Nesse sentido, criamos uma cartilha para ajudar os profissionais de saúde e também os pacientes. Esse material vai muito além de dicas de uso e acesso ao sistema, visando quebrar as barreiras culturais e estimular a adoção de novas tecnologias que simplifiquem o dia a dia das pessoas”, conclui Jomar.