Glosar e Judicializar a ANS

Imagine um supermercado em que:

·         Quando você vai passar no caixa existe uma infinidade de produtos que não foi você que colocou no seu carrinho;

·         O mercado decide se pode cobrar preço mais caro ou mais barato pelo produto dependendo da vontade dele … caso a caso;

·         Quando você diz que não vai pagar por uma coisa que não colocou no carrinho é o mercado quem decide se você pode recusar o pagamento ou não;

·         Isso é feito sempre … toda vez que você vai ao mercado … não é algo que ocorre de vez em quando – você tem certeza absoluta de que toda vez que passar por lá, seu carrinho estará cheio de coisas que não são suas, com preços errados.

Se você não teria outra opção de compra, certamente recorreria ao judiciário !

Pode parecer absurdo que isso possa existir … mas é o que ocorre com as operadoras de planos de saúde em relação ao ressarcimento que devem fazer ao SUS pelos atendimentos realizados pela rede pública de saúde pelos seus beneficiários !

A origem da informação do ressarcimento ocorre em grande parte em hospitais que não possuem capacitação adequada para faturar corretamente contas contra o SUS … boa parte que não tem sistema de informação estruturado, com prontuários incompletos e processos que dependem do trânsito de papéis e interpretação do que está escrito … e do que não está:

·         Esta “bagunça” é passada do hospital para o SUS, e do SUS para a ANS;

·         E a ANS simplesmente “joga no colo” das operadoras para que paguem a conta;

·         Se a operadora não concorda, a ANS julga o recurso, não existindo chance de acesso ao prontuário do paciente ou justificar que a escolha do atendimento na rede pública não foi por falta de rede;

·         Um processo em que “o prestador do serviço” (SUS + ANS, no caso) tem total soberania para decidir o que é certo ou errado.

 

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(*) Todos os gráficos são partes integrantes do Estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil

O gráfico ilustra a evolução do volume de processos apresentados para que as operadoras paguem (ABIs), e o volume de processos que se tornam dívida (GRUs):

·         A diferença entre o que é apresentado e o que se torna dívida é grande;

·         Quem pode pensar que isso é bom para as operadoras, uma vez que muito do que está errado é cancelado, se engana totalmente;

·         Mesmo com o sucesso do pleito da reclamação, cada processo desses leva custo para a operadora: receber a notificação, analisar, ver que está errado e recursar … tudo isso custa … e dependendo do valor do processo custa relativamente muito … não é coisa pouca !

·         E estamos falando de centenas de milhares de processos … não são meia dúzia !!

 

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O gráfico demonstra a mesma relação (ABIs x GRUs) mas substituindo a quantidade de processos pelo valor deles:

·         Estamos falando de processos “na casa” do bilhão de Reais apresentado, que se tornam 1/4 do valor como dívida;

·         É evidente, analisando os dados, que além do volume de apresentação ser muito superior do que deveria, o valor apresentado é “aviltante”;

·         Coleciono projetos de consultoria e treinamento em mais de 200 hospitais, boa parte deles que atendem SUS … há anos um dos cursos que ministro é de faturamento SUS … podem confiar no que digo: a qualidade das contas geradas na maioria deles é péssima … não só em relação ao que se cobra, mas até em relação à identificação correta do paciente … sei bem do que se trata esta base de valor das ABIs … ninguém me contou !

·         Estes números comprovam o que digo !!

 

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Construindo o gráfico em percentuais a proporção fica mais visível:

·         A relação entre o volume de ABIs (o que foi apresentado) e o volume de GRUs (o que se torna dívida) é 41,7 %;

·         A mesma relação em relação ao valor é 44,3 %.

Também coleciono dezenas de projetos de consultoria e treinamento em operadoras de planos de saúde:

·         A maioria absoluta delas não têm capacitação adequada para entender a conta que está recebendo;

·         Estas não têm discernimento para recursar e Judicializar … e assim alimentam a existência de um processo infeliz de cobrança … ninguém me contou !

·         Posso assegurar que se estivessem melhor capacitadas os percentuais seriam “mais sinistros” do que estes.

Bem … desde 2017 não faz mais sentido discutir se o ressarcimento deve ser feito ou não pelas operadoras:

·         O tema é polêmico porque parte dos especialistas defende o ressarcimento como penalização para as operadoras que não possuem rede adequada para atender seus beneficiários, e parte critica o ressarcimento afirmando que o pagamento pelo serviço já foi feito pelo SUS e ao cobrar da operadora o cidadão paga 2 vezes (como contribuinte dos impostos e como beneficiário do plano);

·         Particularmente defendo que os dois lados têm razão … são fatos e não opiniões;

·         Mas o STF já decidiu: as operadoras devem pagar … então colocar em discussão o ressarcimento é “carta fora do baralho”.

O que se deve fazer é estar bem preparado para identificar tudo que é gerado no processo falho de apresentação SUS-ANS e recursar dentro do âmbito que a ANS definiu como sendo permitido fazer:

·         E como SUS-ANS se colocam na posição de legislativo (definindo o processo), executivo (apresentando a conta) e judiciário (julgando os recursos), só resta para as operadoras a judicialização quando a intransigência extrapola os limites;

·         Como é difícil para uma pessoa como eu que defende judicialização como a última, da última, da última coisa que se deve praticar na saúde … ter que dizer isso !

 

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Veja que os números que a ANS divulga, só daquilo que acontece no âmbito da ANS, sem envolver o poder judiciário, parecem aqueles dados de produtividade que vemos afixados nos quadros de avisos e sites dos tribunais:

·         Primeira e segunda instância;

·         Decisões que admitem e não admitem recursos;

·         E relatórios que comemoram a aplicação das penalidades, ao invés de definir processos que evitam o dano ao sistema público de saúde, que evitam custos desnecessários para as operadoras;

·         Relatórios que demonstram com orgulho informações que não gostaríamos nem de saber que existem !

Não podemos comemorar aumento de penalidades:

·         Não se deve comemorar o aumento da aplicação de multas por excesso de velocidade;

·         Deve-se comemorar a implantação de equipamentos que reduzam a velocidade e não dos que multam … a implantação de coisas que evitem que o motorista cometa a infração, e assim reduza o risco de acidentes;

·         Afinal o que se quer: evitar acidentes ou melhorar a arrecadar de receita para o governo ?

 

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Os próprios dados da ANS ilustram aquele supermercado que imaginamos lá em cima … no início:

·         Se 43,6 % do que o supermercado estava querendo cobrar no carrinho estava errado, e as operadoras não estão adequadamente capacitadas para recursar … imagine qual seria o indicador se estivessem !

·         E pergunte para qualquer operadora se um credenciado seu (hospital, clínica, centro de diagnósticos …) continuaria sendo credenciado se o índice de glosas nas contas fosse de 43,6 % !!

Se as operadoras não têm que tolerar serviços de saúde credenciados que apresentem contas desta forma … também não têm que tolerar que SUS e ANS façam isso com elas.